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Crítica | Kingsman: O Círculo Dourado – Tudo o que uma continuação não deve ser

Matthew Vaughn sabe das coisas.

Desde que começou a dirigir seus próprios filmes, saindo da sombra de seu “mentor” britânico Guy Ritchie, o diretor foi se mostrando como uma das vozes mais originais e dinâmicas do cinema de gênero. Um pequeno indie de crime que brincava com seu estilo em Nem Tudo é o que Parece, um conto de fadas irreverente e inventivo com Stardust – O Mistério da Estrela e duas incursões primorosas no estudo do super-herói com Kick-Ass: Quebrando Tudo e X-Men: Primeira Classe. Esses últimos foram tão adorados que imediatamente geraram continuações, mas que dispensaram a presença do diretor; inseguro em trabalhar novamente com o mesmo material e se repetir, o que levou-o à adaptação da graphic novel Kingsman: O Serviço Secreto, obra de Mark Millar e Dave Gibbons.

Pessoalmente, acho o filme de 2015 seu melhor trabalho. Perfeito como sátira e homenagem, era uma exemplar história de espião que trazia fortes ecos da era dos James Bonds de Sean Connery e Roger Moore, abraçando o cartunesco e camp na medida certa e com a elegância inglesa que tornou o agente secreto de Sua Majestade tão popular, além de evocar todas as características que tornaram a carreira de Vaughn tão única; desde seu talento com cenas de ação até o humor negro impagável. Com um resultado tão excepcional, foi uma felicidade geral que Vaughn faria a primeira continuação de sua carreira com Kingsman: O Círculo Dourado. Porém, para um cineasta tão inteligente e entendido dos gêneros que explora, é uma gigantesca decepção que este seja seu pior e mais problemático filme.

A trama começa algum tempo depois do original, com Eggsy (Taron Egerton) atuando na agência Kingsman como o novo Galahad, enquanto mantém um namoro firme com a princesa sueca Tilde (Hanna Almström). Tudo vai bem até o momento em que o espião é atacado por Charlie (Edward Holcroft), antigo recruta que aliou-se a um misterioso cartel de drogas chefiado pela megalomaníaca Poppy (Julianne Moore), que facilmente destrói o QG dos Kingsman e elimina praticamente todos os agentes. Batendo em retirada, Eggsy e Merlin (Mark Strong) pedem auxílio aos Statesman, a versão americana da agência de espionagem.

Continuação de Meia medida

Assinando o roteiro ao lado de sua parceira habitual, Jane Goldman, Vaughn segue uma máxima importante na realização de toda boa continuação: começa a história com nosso protagonista se acostumando a uma nova realidade e então, literalmente, lhe tira tudo e joga-o em uma situação extrema. Isso é bem situado com a destruição da Kingsman e sua relação com Tilde, mas esta última infelizmente é incapaz de gerar o mínimo afeto ou desenvolvimento; convenhamos, o envolvimento de Eggsy com a princesa sueca não precisava ter ido além daquela piadinha escatológica no final do primeiro filme, e o relacionamento sério entre os dois é algo que fica forçado – especialmente pela falta de química entre seus intérpretes. Mas essa ideia de Eggsy jogado à realeza ao menos rende alguns momentos divertidos, como o jantar onde o jovem usa seus gadgets para surpreender seu sogro acerca de conhecimentos políticos e culturais.

Muito em O Círculo Dourado funciona assim: uma premissa interessante que acaba rendendo um ou outro conceito ou momento, mas que acaba tristemente subaproveitada. Desde o retorno de Charlie, um personagem bem coadjuvante do primeiro filme que ganha um destaque importante (e o roteiro da dupla agrada por usar uma minúscula ação do anterior para justificar a condição física de seu retorno), até a expansão do universo da história para nos apresentar aos Statesman. Se os Kingsman usam uma alfaiataria em Londres como disfarce, os primos americanos atuam como uma destilaria de uísque no Kentucky, o que por si só já oferece uma porta para inúmeras piadas e comparações entre os estilos distintos dos dois. Inexplicavelmente, o único humor fica nesse setting, visto que o roteiro não explora nada além do estereótipo do cowboy ou do caipira (não seria mais interessante explorar o estereótipo do espião americano remodelado com a franquia Bourne?), algo refletidos no sotaque dos personagens de Channing Tatum e Jeff Bridges ou no laço característico do agente vivido por Pedro Pascal, assim como os figurinos marcados por jeans e chapéus de praticamente todos os da agência – a trilha musical de Henry Jackman e Matthew Margeson também acerta ao trazer uma influência “caipira” e próxima do western – com as guitarras e banjos – para as cenas de ação desses personagens.

Toda a caracterização é perfeita, mas não temos nada além disso. Os personagens de Tatum e Bridges, por exemplo, aparecem pouquíssimos e são tristemente desperdiçados pelo roteiro, que mantém o chefe sênior de Bridges nas sombras e inventa um obstáculo fraco para tirar o ótimo Tatum da narrativa, literalmente colocando-o em uma geladeira. Halle Berry é outro tiro desperdiçado, atuando como a versão feminina de Merlin (o Q da operação), mas sem qualquer desenvolvimento ou alguma característica marcante, além do velho clichê da “analista que quer atuar no campo” sendo usado para garantir algum tipo de conflito. Pascal é o que acaba melhor aproveitado aqui, e felizmente o ator é carismático o bastante para tornar seu agente Uísque (sim, todos na Statesman têm codinomes de bebidas) uma figura interessante, ainda que sua motivação seja patética e apressada – algo que o filme faz muito: nos apresentar elementos e conceitos com os quais somos obrigados a nos importar imediatamente.

Um exemplo gritante disso, além de todas as viradas sem graça da relação entre Eggsy e Tilde, é a inserção abrupta de um núcleo presidencial em pleno segundo ato, envolvendo os personagens recém-apresentados de Bruce Springwood e Emily Watson. Diretamente ligados às ameaças da vilã Poppy, o drama criado pelos roteiristas é tão capenga e artificial, e também problemático na forma como lida com o problema do uso de drogas. Interpretada por uma inspirada Julianne Moore, Poppy é uma vilã cuja motivação nunca fica muito clara e nem parece forte o suficiente, em uma versão mais elaborada de “quero ser notada”, algo muito mais fraco se comparado com o Valentine de Samuel L. Jackson, que era sim um psicopata, mas com um propósito específico e que até conseguia ser coerente em suas metáforas. Em termos de diálogos, todas as interações da personagem servem para vomitar exposição e oferecer detalhes de forma pouco sutil, além do velho clichê do “vilão que usa de alegorias para parecer inteligente”, no caso, uma observação sobre como o açúcar é mais viciante do que suas drogas e, ainda assim, legalizado.

Poppy só ganha pontos pelo carisma de Moore e a “meiguice” que a atriz confere a uma completa lunática, vide a bizarra cena onde a vilã prepara um hamburguer com a carne de um funcionário recém-assassinado, e faz seu sucessor comê-lo. Outro ponto válido é a concepção da personagem, que vive isolada em uma floresta asiática, mas toda decorada com elementos, cenários e objetos que recriam os anos 50 – em um acerto louvável do designer de produção Darren Gilford, que utiliza bem os elementos vermelhos em objetos, balcões e paredes, e os doces artificiais como decoração nas externas; praticamente uma Disneyland açucarada e cinquentista. Já todos aqueles cachorros e operários robôs? Incogruentes com a proposta retrô de Poppy, e sinceramente, são ridículos demais; o primeiro sabia bem como dosar esse exagero, mais ligado ao Bond clássico. Aqui, o nível é mais pra Austin Powers. E já que falei em ridículo, prefiro nem comentar a pavorosa participação do músico Elton John, desde já um candidato fortíssimo para o Framboesa de Ouro.

No primeiro filme, o roteiro de Vaughn e Goldman era cuidadoso ao estabelecer todas as peças no primeiro ato do longa, que é invejável em sua estrutura cuidadosa e certeira, mas aqui todas as coisas são jogadas e tiradas da cartola, e esse é um problema grave que também se aplica aos gadgets. Claro, não cobro realismo ou lógica de uma aventura que se propõe a abraçar o cartunesco, mas quando todas as artimanhas e instrumentos surgem apenas no Deus Ex Machina (como o para-quedas de Uísque ou o clarão do relógio de Eggsy), fica difícil se envolver emocionalmente, já que os personagens parecem capazes de solucionar toda e qualquer situação – problema que também vem afetando muito o Homem de Ferro de Robert Downey Jr, mas isso é assunto para outro dia. Novamente, no primeiro filme todos os gadgets nos eram apresentados em um momento anterior (é uma lei sagrada dos filmes de 007), e seu uso posterior nas cenas de ação fazia mais sentido e até causava um senso de satisfação maior, por ser a recompensa ao espectador após uma promessa. Aqui, não há promessa alguma, apenas uma entrega excessiva que é empurrada goela abaixo, como uma criança histérica querendo brincar com todos os brinquedos ao mesmo tempo.

Mas talvez a grande suspensão de descrença que O Círculo Dourado proporcione é o retorno do Harry Hart de Colin Firth. Sua morte no filme anterior era uma das grandes surpresas da história, e também uma de suas grandes virtudes na forma em que afetava o personagem de Taron Egerton e o forçava a amadurecer, então Vaughn e Goldman deviam ter um ótimo motivo para trazê-lo de volta dos mortos, certo? Infelizmente, devia ser apenas saudades do ótimo superespião, já que a desculpa inventada para trazê-lo é tão absurda e circunstancial que não justifica qualquer ação do personagem; sem falar que elimina qualquer senso de risco aos personagens, já que somos introduzidos a um novo elemento que praticamente pode eliminar a mortalidade, em um problema similar àquele oferecido pelo sangue milagroso de Benedict Cumberbatch em Além da Escuridão: Star Trek.

Em mais uma máxima de sequências, temos Harry sem memória, o que nos leva para mais uma fórmula consagrada em que o jovem aprendiz do anterior precisa treinar seu mestre (vide Homens de Preto 2), mas nem isso é realizado já que a amnésia temporária logo é curada e Harry retorna o mesmo… mas imperfeito em suas habilidades. É estranhíssimo e revela como os roteiristas não têm ideia do que fazer com Harry, já que nem mesmo a relação com Eggsy evoluí ou traz algo de novo – o arco do jovem já estava completo no anterior, com a morte de seu mestre. Trazê-lo de volta é pura nostalgia.

O Trauma de Free Bird

Com uma história problemática e desencontrada, ao menos teríamos o talento de Matthew Vaughn para elaborar setpieces e cenas de ação marcantes? Por incrível que pareça, o Vaughn diretor surge tão deficiente quanto seu lado roteirista. Obviamente, o primeiro Kingsman acabou marcado pela espetacular cena do massacre na igreja, onde o agente de Colin Firth participava de uma verdadeira carnificina em plano sequência ao som de “Free Bird” do Lynyrd Skynyrd, então uma continuação de certa forma “clama” por uma sequência que a superasse. Felizmente, Vaughn em pessoa afirmou em entrevistas que essa não era sua intenção, e que todas as cenas de ação precisariam funcionar em serviço da história, não tendo a intenção de “superar a cena da igreja” como motivação para cada set piece. Curioso que o diretor tenha dito isso, visto que ele faz exatamente o contrário desta afirmação na maioria das cenas de pancadaria.

A fórmula de “música pop + pancadaria + plano sequência falseado” norteia praticamente todas as cenas de ação do filme, mas tudo parece mais exagerado aqui, além de sofrer de uma artificialidade gritante. A primeira grande cena, que já surge nos primeiros minutos de projeção de forma abrupta, traz uma luta dentro de um taxi que sofre para lidar com o espaço comprimido e a coreografia confusa, além das técnicas para esconder os cortes seja muito evidente e distraia; sem falar no slow motion excessivo e nas intrusivas mudanças no aspect ratio graças à tecnologia IMAX, que é absolutamente dispensável aqui. Esse tipo de crítica cairia bem em praticamente todas as outras cenas, mas o uso do espaço mais aberto garante uma coreografia interessante e divertida, especialmente quando temos o laço de Uísque envolvido.

Mas nada parece realmente novo, e a todo momento Vaughn acaba trazendo alguma música pop para servir de fundo, além de repetir diversas situações do anterior de forma preguiçosa; como mais uma briga de bar ou Eggsy lutando com algum oponente de prótese. Entretém, sim, mas nada realmente fica na memória ou causa uma grande impressão como no anterior, e o filme sofre também com um exagero nos efeitos visuais; que não chegam a ser exatamente ruins, mas o espectador percebe sua presença na hora de travellings digitais que nunca acabam, membros robóticos e uma cena envolvendo um teleférico que em momento algum surge convincente. O mesmo precisa ser dito dos cachorros robôs que acabam sendo uma enorme distração no clímax, e surgem como capangas muito mais genéricos e menos interessantes do que a Gazelle de Sofia Boutella.

O jogo de câmera de Vaughn nos momentos mais simples também surge mais pobre. Se no primeiro tínhamos movimentos de câmera elegantes e transições inteligentes, aqui a grande maioria é rendida aos já mencionados travellings digitais. Até mesmo a encenação básica do diretor parece comprometida, como na escatológica cena em que Poppy prepara o hamburguer canibal: vemos o corpo do pobre coitado sendo triturado pelo moedor, Poppy apanhando um bolo de carne e modelando a forma de um hamburguer e depois jogando-o na chapa. Quando o consumidor retorna, Vaughn e a vilã o oferece o sanduíche pronto, a câmera vira-se para o moedor onde o corpo da vítima ainda está ali, como se Vaughn quisesse “lembrar” o espectador sobre a natureza do alimento. Oras, nós acabamos de ver a cena do trituramento, qual a necessidade de precisar ficar – com perdão pelo trocadilho – mastigando para o espectador?

Como amante incondicional do primeiro filme, é triste ver como Kingsman: O Círculo Dourado faz todas as decisões erradas que uma continuação poderia fazer. Traz ótimas ideias e uma premissa saborosa, mas falha ao desenvolvê-las e trazer inovações pertinentes, que diversas vezes fazem este filme parecer como uma versão inchada e genérica do primeiro filme. Matthew Vaughn evitou fazer continuações por muito tempo, e a experiência aqui certamente indica que havia motivo para não fazê-las.

Vaughn sabe das coisas, mas não como continuá-las.

Kingsman: O Círculo Dourado (Kingsman: The Golden Circle, EUA/Reino Unido – 2017)

Direção: Matthew Vaughn
Roteiro: Matthew Vaughn e Jane Goldman, baseado na obra de Mark Millar e Dave Gibbons
Elenco: Taron Egerton, Colin Firth, Channing Tatum, Mark Strong, Pedro Pascal, Halle Berry, Julianne Moore, Jeff Bridges, Edward Holcroft, Hanna Alström, Sophie Cookson, Michael Gambon, Bruce Greenwood, Emily Watson, Elton John, Poppy Delevingne
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 140 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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